Os quatro do Brasil

O Brasil nasceu do verbo, da lei e do mapa — Nabuco pensou, Rui Barbosa estruturou e Rio Branco desenhou. Camões foi o cimento concreto. Retrato breve de uma conversa entre António Campos e João Morgado na Fliporto lusa.

Joaquim Nabuco lançou o cimento ideológico da nação, Rui Barbosa ergueu o seu arcabouço jurídico e o Barão do Rio Branco desenhou-lhe os contornos geográficos. A tríade de homens do Império foi, em verdade, o esqueleto invisível do Brasil que resistiu à tentação do esfacelamento. Ideia, lei e território — três dimensões que, no século XIX, impediram que o país se fragmentasse em repúblicas regionais ou colônias reeditadas.

E acima deles, pairavam as figuras de Pedro I e Pedro II, cada um com um gesto decisivo: o primeiro, que preferiu a incerteza do trono à certeza do caos; o segundo, que sustentou o equilíbrio de uma nação jovem com o peso da cultura e da moderação.

O Brasil nasceu do verbo e do mapa. Foi o pensamento de Nabuco que deu sentido moral à liberdade; foi a pena de Rui Barbosa que traduziu em lei o que antes era apenas convicção; e foi o talento diplomático de Rio Branco que fixou as margens onde o sonho se tornaria país. Juntos, esses homens criaram um país continental que se manteve inteiro quando tudo à sua volta se dividia. O gesto de Pedro I — “Pegue essa coroa antes que algum aventureiro a tome” — ecoa até hoje como advertência: o poder é sempre uma disputa, e quem hesita perde o direito de definir o próprio destino.

Os povos que não conhecem a sua origem vivem eternamente exilados de si mesmos

Mas talvez o Brasil contemporâneo esteja novamente diante de um espelho semelhante. Falta-lhe uma nova ideologia que una, uma nova arquitetura jurídica que proteja, e um novo mapa — não geográfico, mas moral e ambiental — que oriente. As fronteiras de hoje não estão mais no Acre ou no Oiapoque, mas nas zonas cinzentas entre a ética e o interesse, entre o progresso e o colapso, entre o verbo e o vazio. E é ali, nesse território movediço, que o país parece perder-se de novo.

Há um Brasil que ainda segura a própria coroa — o da cultura, da ciência, da gente que trabalha e sonha. E há outro, fatigado, que a deixa escorregar. A história, no entanto, continua a lembrar: quem não tem a coragem de segurar a sua coroa, acabará governado pelos aventureiros.

“Minha pátria é a língua portuguesa.”

Fernando Pessoa

Quando o Brasil ainda esperava pela sua independência política, os seus românticos já travavam uma revolução estética. Tentavam escrever um país em palavras novas: as palmeiras, os índios, os rios, o sol que nascia do outro lado do Atlântico. Queriam libertar a imaginação da sombra de Lisboa, dar às letras o mesmo sopro de autonomia que a História ainda não concedera. Mas, de repente, alguém disse — “Espera lá, Camões também é nosso.” E esse gesto foi um dos mais ousados da literatura brasileira.

Antonio Campos, Igor Lopes e João Morgado  no Fliporto, no Porto | 25 out 2025

Reivindicar Camões, naquele tempo, era quase uma heresia. O Brasil queria esquecer Portugal, queria apagar os símbolos da antiga autoridade. No entanto, apropriar-se do autor dos Lusíadas significava algo maior: não renegar a origem, mas redimi-la. Foi uma provocação de inteligência — o reconhecimento de que a língua é o campo onde a independência se escreve, e não apenas se declara. Ao reivindicar Camões, o Brasil transformou a herança em potência, e o colonizador em matéria-prima da própria liberdade.

A literatura romântica brasileira — de Gonçalves Dias a José de Alencar — não rompeu com a tradição; reinventou-a. No fundo, disseram ao mundo que o português não era mais apenas a língua de Portugal, mas o idioma de um povo em expansão imaginária. O gesto de reapropriação foi, portanto, o primeiro ato de descolonização simbólica da América lusófona. Antes da República, antes da modernidade, o Brasil descobriu que sua verdadeira coroa estava nas palavras.

Hoje, quando o idioma volta a ser território de disputa — entre a inteligência artificial, o mercado global e a memória das identidades locais —, essa lição reaparece. O que nos une, de Lisboa a São Paulo, de Luanda a Maputo, é uma comunidade invisível feita de palavras. Uma cidadania da língua, sem fronteiras nem passaportes, onde cada leitor é herdeiro de todos os que escreveram antes dele.

Cartaz inauguração da exposição – O rosto de Camões

E talvez resida aí o maior legado de Camões: ter escrito um poema tão vasto que nenhuma independência conseguiu separá-lo. O poeta que nasceu português acabou por tornar-se, sem saber, o primeiro cidadão da língua que hoje pertence a todos nós.